A Dança Sagrada na Vida
Vou discorrer aqui um percurso diferente do que a dança faz. A dança trata do imperecível, eterno, imortal. Do inenarrável! Do movimento. Do ilimitado. Mas nesse caso, saio da minha zona de conforto, que é justamente tratar do discurso não-falado, daquilo que não se explica pela palavra. Trago para a consciência da razão e INternalizo o que se EXternaliza, que é justamente o caminho que venho buscando e pesquisando no meu trabalho espiritual, pessoal e profissional com a dança.
Ao tirar uma carta de um oráculo que uso para as aulas de dança com minhas alunas, saiu uma que eu nem sabia da existência. Sua palavra-chave era SINTESE. Fui de fato entendê-la somente no dia seguinte, quando comecei a pesquisar e refletir sobre o seminário que eu daria e sobre o papel da dança na vida do ser humano. Esta carta fala sobre “pegar o que é diferente, o variado, aparentemente oposto e contraditório e REUNÍ-LOS, transformando os fragmentos em UNIÃO”. Foi aí então que encontrei o grande paralelo com a dança, já que nesta arte do EXTASE, o caminho a chegar é justamente esse, o da UNIÃO. A síntese une a partir do caos e a dança pode ser o próprio caos, que no instante seguinte reúne e sintetiza. A dança é a síntese de um processo, de uma canalização, de um transe. É a condução para o movimento incessante de ir e vir.
Existem registros gráficos pré-históricos, que relatam sobre a origem da dança na vida da humanidade de 14.000 anos atrás, e mostram que antes mesmo do homem se exprimir por meio da linguagem oral, ele dançou. Ou seja, se exprimiu através da linguagem gestual. Porém para trazer mais consciência sobre linguagem gestual, precisamos sim passar pela linguagem oral.
ELÊUSIS
Mantéia, Mantéia, Mantéia...
A música do Templo me embriaga
Com este canto delicioso...
E esta dança sagrada.
E dançam as exóticas sacerdotisas
Com impetuoso frenesi de fogo
Repartindo luz e sorrisos
Naquele rincão do céu.
Mantéia, Mantéia, Mantéia,
és a Serpente de fogo,
entre os mármores augustos,
és a princesa da purpura sagrada,
és a virgem dos muros vetustos.
És Hadid, a Serpente Alada,
Esculpida nas velhas calçadas de granito,
Como uma Deusa terrível e adorada,
Como um gênio de antigos monólitos,
No corpo dos deuses enroscada.
E vi em noites festivas,
Princesas deliciosas em seus leitos,
e a musa do silêncio sorria nos altares
entre os perfumes e as sedas.
Mantéia, Mantéia, Mantéia,
Gritavam as vestais
Cheias de louco frenesi divino,
e silenciosos as miravam os deuses imortais
sob os pórticos alabastrinos.
Beija-me Amor, olha-me que te amo...
e um sussurro de palavras deliciosas...
estremeciam o Sagrado Arcano...
entre a música e as rosas
daquele santuário sagrado.
Bailai exóticas dançarinas de Eleusis
Entre o tilintar de vossas campainhas,
Madalenas de um, a via-crúcis,
Sacerdotisas divinas...
Elêusis de Samael Aun Weor
(Mantéia, nos antigos Mistérios de Elêusis, quer dizer “Êxtase”)
Extraído de LAKSHMI, V. M. Mistério de Elêusis
Essa passagem mostra a principal característica da dança: O ÊXTASE! Essa palavra vem do grego Ekstasis, que significa TRANSE, de EXISTANAI = deslocar, onde EX = “para fora”, “tirar” somado a HISTANAI = “fazer ficar de pé”. Isso nos mostra o caráter paradoxal do êxtase, da dança, já que para ficar de pé, alinhado, é necessário primeiro expulsar, retirar o que tem dentro, libertar. O êxtase está relacionado ao sentimento de prazer, de consciência ampliada, comunhão, união com a Natureza, que leva à paz, que é a ausência total de sofrimento, a libertação.
E qual é a importância de alcançarmos estes estados de sair de si, se libertar, entrar em ÊXTASE, com consciência¿
Do que adianta orarmos, ir à templos, fazermos rituais de conexão com algo maior, entrarmos em transes onde vivenciamos experiências fortes de iluminação de partes do inconsciente e não conseguirmos realizar os aprendizados do mundo espiritual no mundo físico, não colocarmos em prática, não materializarmos¿¿ A dança tem esta importância também. Se só dançarmos livremente (o que é muito importante também em alguns momentos), mas se só ficarmos nisso, nesse estado de Êxtase, de “ESTAR FORA DE SI” não trazemos nada para este plano em que vivemos, para a Terra, representada pelo nosso corpo. O corpo é a manifestação máxima da SÍNTESE! Da materialização das energias, da sintetização das moléculas, da reunião de diversas vibrações em uma matéria ÚNICA, que nos permite trazer as informações que vêm de outros planos para este plano, e deste para outros planos.
Mas como é que fazemos essa comunicação¿ Como é que usamos este nosso aparelho¿
No contato com o sagrado o homem experimenta algo que o ultrapassa, que o transcende. A palavra Sagrado no contexto da dança tem o sentido de consagração, ato ou efeito de consagrar algo através de uma cerimônia, de um ato cerimonial de sagração. Onde sagrar é “ALCANÇAR, CONQUISTAR UMA POSIÇÃO POR MEIO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA”. Vale ressaltar que a palavra “religiosa” neste contexto tem o sentido de religare, que vem do latim e que, novamente está relacionado à reunir-se.
No Egito havia Danças sacras em homenagem a ÁPIS, o “touro sagrado”, diante de HAT HOR a deusa da dança e da música. Percebemos aqui a linguagem gestual da Dança diretamente ligada às marcações rítmicas da música, passando a ser denominada essa junção de ritual. Então RITUAL é o conjunto de gestos e práticas utilizadas de forma simbólica para que nossa mente entenda, acredite e tome consciência do que está fazendo. E aí está a grande importância de termos consciência de nosso corpo, nossos gestos, nossa ações, nossas danças.
E qual é a história que estamos contando para nossa mente¿ Qual é o ritual que criamos na nossa vida¿
Se nossos gestos, nossa ações estão desordenadas, quando a música que está tocando pede ordem, se nosso corpo se move sem direção quando existe uma condução a seguir, ou se nosso corpo não se movimenta quando deveria se expressar, isso quer dizer que não estamos dançando conforme a música. Estamos fora do ritmo.
Na história da dança, os registros sobre esta arte começam a ser decodificados em palavras na Grécia, por Platão. Na Índia existem registros escritos da dança que provém do Natya Shastra, considerada a bíblia da dança, do século II d.C. E existem registros de dança no Velho e Novo Testamento, com as danças religiosas, danças de celebração às colheitas. No Xamanismo, a dança é uma das técnicas mais utilizadas pelo Xamã, também conhecida como “vôo mágico”, é uma das principais técnicas de cura dele. E em todos os registros de dança que se encontram, de todas as civilizações, existe um ponto em comum que é tratado. O ritmo.
O homem primitivo executava danças coletivas, tribais, que retratavam movimentos convulsivos e desordenados. Ao longo da evolução humana, quando o homem sai do seu estado primitivo, do seu estado selvagem, e passa a outro padrão de vida que é o de viver em sociedade, surge à organização do trabalho para a sobrevivência comum, e esse trabalho é a caça, a trituração de raízes, sementes, folhas, etc. Muitos desses trabalhos eram efetuados e regulados por marcações rítmicas, como pancadas e gritos. Um bom exemplo disso, em comunidades do Acre, Maranhão, entre outras, que fazem feitios de medicinas sagradas se utilizando das folhas, ervas, cipós, é a “bateção” de certas plantas. Esta técnica tradicional e ancestral é feita de maneira totalmente ritmada, inclusive muitas vezes acompanhada de cantos sagrados que ajudam a conduzir as batidas dos tocos de madeira nas plantas, com a finalidade de triturá-las para posterior preparo da medicina. Esta é uma referência dessa organização rítmica dos gestos, de pulso.
Sócrates considerou a dança como a atividade que forma o ser por completo. Ela dá proporções ao corpo, é fonte de boa saúde, é uma ótima maneira de reflexão estética e filosófica, é para celebrar, invocar, evocar, cultuar. Ritmar e ordenar a vida.
Platão definia ritmo como sendo um modo de organização regular das formas no tempo, exemplificando a repetição métrica das ondas do mar, já que a palavra Rythmós grega significa literalmente movimento regular das ondas. Este regular não tem a ver com matemática, ou parâmetro rígido, mas sim - como também comprova o pesquisador francês Emille Benveniste em seu ensaio, Problemas da linguística geral - que o ritmo é uma maneira particular de fluir e por tanto, sempre sujeito a mudança. “É a organização-linguagem do contínuo de que somos feitos.” É como um rio que corre. É dançar conforme a música.
Pode-se exemplificar esse ritmo - que se estabelece por meio da dança, que embala fluindo no ritmo das águas - com um hino chamado “Eu Balanço” do Hinário (livro de cantos) de um mestre fundador de uma linha espiritual que consagra em seus Trabalhos as forças da Natureza. Neste hino o termo “balanço” evoca o movimento oscilatório das ondas do mar, o vai e vem delas. Este ritmo incessante de ir e vir é um bailado ritualístico deste Trabalho que vem com o intuito de alinhar, UNIR os dois lados do cérebro, justamente pelo gesto de ir para a esquerda e para a direita. Este movimento de esquerda-direita também traz a UNIÃO dos princípios masculinos e femininos, yin-yang, da mãe e do pai, que quando se unem no amor, resultam na alquimia do êxtase. Dançando e balançando o maracá, no ritmo se canta:
EU BALANÇO, E EU BALANÇO, E EU BALANÇO, TUDO ENQUANTO HÁ...
...TENHO PRAZER, TENHO FORÇA, E TENHO TUDO, PORQUE DEUS ETERNO,É QUEM ME DÁ...
Além disso, existem também outros hinos e hinários de ritos de diversos Trabalhos Espirituais, que contém ícones que inclusive são manifestados por “dançarinos sagrados”, pessoas que exercem a função única de dançar nestes contextos ritualísticos. Esta função traz como principais objetivos, movimentar, encaminhar, alinhar, invocar e evocar, comunicar e transmutar energias presentes durante os rituais.
Assim, podemos perceber que a dança é um estudo infinito a ser feito na vida de cada um de nós. Dentro de um caminho de buscas é uma ferramenta para o autoconhecimento. Um estudo fino, que deve ser praticado para ser compreendido em sua magnitude. Limpezas e grandes mudanças podem acontecer por meio da dança, contatos também. Processos podem se abrir ou se encerrar nela.
01/11/2014 - Palestra dada no Seminário de Primavera do Centro de Estudos Xamânicos de Expansão da Consciência Porta do Sol – Carla Brasil Nogueira